Para quem não sabe, há 40 anos eu não estava em lugar nenhum, pelo menos nenhum de que eu me lembre (se acreditarmos em vidas passadas) já que ainda não tinha nascido. Sei que a minha mãe estava em casa dos patrões (cujos filhos passaram a noite na cave a ouvir rádio) e não percebeu nada daquilo porque o dia dela foi igual a tantos outros. Sei que as pessoas não sabiam muito bem o que fazer em Aveiro, entre a ânsia de festejar e o medo de que desse para o torto.
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A minha imagem do 25 de abril |
Eu só nasci quase três anos depois. Portanto, para mim, o 25 de Abril é uma sucessão de momentos que eu não percebia. Manifestações (que hoje não sei se eram do 25 de Abril ou do 1.º de Maio) que eu ia ver descer a Avenida pela mão dos meus pais, com cravos, bandeiras vermelhas, palavras de ordem, discursos sempre mais ou menos iguais e canções da Brigada Victor Jara. Ah, e havia a feira, imensas barracas cheias de coisas que nós íamos ver enquanto os senhores de braço no ar falavam. Era sempre um dia de vestir a roupa nova e ir para o Rossio (tirando uma vez em que fomos visitar os meus avós e caiu a maior camada de granizo de que me lembro).
Quando se é criança, dias assim são marcados pelas imagens e pela emoção, e como o 25 de Abril e o 1.º de Maio eram tão parecidos e tão próximos, hoje não consigo distingui-los na memória. E depois as incoerências que nos espantam aos 4 ou 5 anos, como o estranhamento de haver um feriado por causa de uma ponte que tinha nome de data em vez de nome de ponte e afinal era de todos os dias, não era de um dia só. Porque na minha cidade as pontes tinham nome: a ponte de Pau (que não era de madeira), a ponte das Pirâmides (que não tinha pirâmides nenhumas à vista que não fossem os montes de sal que eram mais para o cone), a ponte de Esgueira (que era um túnel por baixo da linha do comboio) e as Pontes (que era uma praça por cima da ria). Agora a Ponte 25 de Abril devia ser mesmo muito importante para ter um feriado.
E havia sempre eleições. Eu gostava de eleições. Lá ia eu pela mão da minha mãe para uma grande fila que se desdobrava em muitas filas dentro do pavilhão desportivo até a uma mesa com uns senhores de gravata que liam alto o nome da minha mãe (o nome todo!) e depois davam-lhe um papel e íamos a uma mesinha muito escondidinhas e ela escrevia qualquer coisa e o papel ia para uma caixa grande e pronto. Mas era de certeza uma coisa muito séria e muito importante.
Depois cresci e o 25 de Abril tornou-se muito mais importante. Era FERIADO! Feriado, ah, essa palavra doce que queria dizer não ter escola. Esse é que foi o problema. Para os que nasceram depois de 74, mais do que qualquer coisa, o 25 de Abril tornou-se só um feriado.
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Olhar de menino tímido que ousou o sonho |
Hoje, o maior problema deste país é que para as pessoas como eu e mais novas do que eu, o 25 de Abril é um dia a cores no calendário em que não vamos nem para a escola, nem para o trabalho. Triste, triste povo este que não tem memória. Triste povo que hoje tem saudades da ditadura e admira Salazar. Triste povo este que não tem ideais nem sonhos.
E se eu pudesse escolher lembrar-me de uma vida passada, queria lembrar-me de ter estado em Lisboa no dia 25 de Abril de 1974 em cima de uma chaimite com um cravo no cano da G3, ou melhor, ter sido a mulher que deu o cravo ao soldado ou a criança que atravessou a minha infância nos cartazes nas paredes. Quem me dera que fosse possível que toda a gente neste país tivesse a verdadeira memória do 25 de Abril e a defendesse com unhas e dentes e cravos vermelhos.